TUA VINHARIA
 
...

Cântico Tinto

As “Vozes transeuntes” lançaram no sábado o Correntes d’Escritas.  É uma espécie de arruada poética com Isaque Ferreira, João Rios, Renato Filipe Cardoso e Rui Spranger a declamarem poesia nas mais de 50 lojas que aderiram à iniciativa “Na minha loja também à poesia”. E assim arrancou o mais antigo Encontro de Escritores de Portugal realiza-se na Póvoa de Varzim que já vai na 21ª edição.

Na Tua Vinharia bebeu-se vinho, claro. Vinho Página. Um excelente Pinot Noir e um surpreendente Sauvignon Blanc. E claro a poesia também trouxe vinho.

Isaque Ferreira coadjuvado pelos restantes declamou um poema de  J.M. de Matos Vila, poeta de Santa Maria da Feira, que a partir do “Cântico Negro” de José Régio escreveu este Cântico Tinto.

J.M. de Matos Vila editou o poema “a favor dos Bombeiros (que sabem dar à água uma aplicação adequada)"

Eis então o poema que sabe muito bem ler mas quando declamado, sabe melhor do que alguns vinhos.

 

Cântico Tinto

«Não bebas vinho» - dizem-me alguns com olhos abstémios,
retirando-me os copos, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «não bebas vinho»!
Eu olho-os com olhos bêbados
(Há, nos meus olhos, ironia e mágoa)
E enxugo mais um copo,
E nunca bebo água…

-

A minha glória é esta:
Sem a botija cheia,
Não acompanhar ninguém!
- Que eu bebo vinho com o mesmo à-vontade
Com que um menino chupa o leite a sua mãe.

-

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Haja tascas no caminho…
Se quando a conta vem meu bolso é que responde,
Porque me repetis: «não bebas vinho»?
Prefiro ir esbarrar nos guardas sonolentos
Sentir que sou levado pelos ventos,
Redemoinhar em volta dos postes macilentos,
A não beber vinho…

-

Se vim ao mundo, foi
Só para esvaziar canecas cheias,
E para lavar os pés tenho a água reservada…
O mais que faço não vale nada.

-

Como, pois, sereis vós
Que me fareis discursos, rogos e promessas
Querendo entre mim e os copos pôr obstáculos?
Corre, nas vossas veias, sangue velho e capilé
E vós amais o que não tem sabor!
Eu amo o Aveleda, o Colares, o Cartaxo,
Só no verde e no tinto ponho fé
Só ao branco e ao maduro tenho amor…

-

Ide! tendes laranjadas,
Tendes sumos, tendes cocas
Tendes Vidago, Pedras Salgadas
E outras águas “boas”, gabadas pelos sábios…
- Eu tenho a minha alegre bebedeira!
Levanto-a, como um facho, ou uma bandeira
E sinto espuma, e vinho, e cânticos nos lábios…

-

O Copo e a Garrafa é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, a quem beber jamais estafa,
Nasci do amor que há entre o Copo e a Garrafa.

-

Ah, que ninguém me dê água de Luso em garrafões!
Ninguém me ofereça pingos ou galões,
Ninguém me diga: «não bebas vinho»!
A minha vida é uma rolha que saltou.
É uma garrafa que se esvaziou
É um copinho a mais que me animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
O que não vou é sem vinho!

 

J. M. de Matos Vila, Cântico Tinto,
Santa Maria da Feira, 1998

 

2020 Feveiro 19

Correntes d'EscritaTua VinhariaPoesiaCântico TintoJ.M. de Matos Vila