TUA VINHARIA
 
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O talismã dos sábados

Sábado sim, sábado não, ele era o nosso primeiro cliente. Muitas vezes ainda antes das 11h estava à porta com o seu saco para fazer as compras habituais. Sempre vinho biológico da Quinta dos Castelares. Os genros gostam muito desse vinho e ele ficava contente por o ter em casa quando a família o visitava. Ele dizia “se é para beber vinho ao menos que seja do bom”.

O nosso vizinho aqui da rua trazia sempre aquela alegria. Dava por mim a abrir a loja aos sábados na expectativa de o receber. Perguntava sempre pela minha senhora e pelos meninos. Fazíamos umas piadas e lá ia ele tranquilo e de sorriso na cara deixando outro deste lado. Um dia contamos-lhe que sempre que era ele o primeiro cliente do dia as vendas corriam bem. Era como um talismã. Ele ficou satisfeito e feliz. Fomos verificando essa coincidência. Sempre que o senhor Fernando era o primeiro a entrar na loja o dia seria francamente bom. Aconteceu também uma ou outra sexta-feira e a tendência manteve-se.

Não era só por causa disso que gostávamos de o ver. Era pela energia apesar da idade, pela positividade apesar dos tempos difíceis. Pelo carinho e amizade. “Se precisar de alguma coisa, já sabe…”

Ele, que tinha sempre como última frase de despedida um carinhoso “Saúde, muita saúde” foi-se reservando em casa devido à pandemia. Tinha algum receio em sair, confessava a mulher que o substituiu nas compras. E, já agora, com o mesmo efeito no resultado dos nossos sábados.

A senhora também perguntava sempre pela minha senhora e falava do marido, filhas e genros. Mais de 50 anos juntos e muito em comum neste belo casal.

Uma ou outra vez ainda levei eu o vinho até à casa deles também para cumprimentar o amigo sempre impecavelmente aprumado, mesmo sem sair à rua, e, claro, sempre com aquele sorriso e piadas sem fim mesmo que falássemos apenas durante um minuto.

Esta semana a senhora entrou na loja. Uma quarta-feira. Sorri, trocámos os habituais bons dias e separei o vinho do costume. Perguntei-lhe pelo marido. A resposta saiu pronta. “O meu marido morreu”. Ela tentou continuar de voz embargada e lágrimas nos olhos. Eu senti um vazio inexplicável. Moram aqui na rua e eu não tinha sabido. Numa rua onde se fala disto e daquilo e tudo se comenta, mesmo o que não aconteceu, escapou-me a morte de um amigo recente. E os quatros olhos ali presentes inundaram-se sem que eu fosse capaz de dizer nada de jeito.

Coragem, terá sido uma das palavras que disse. Ela respondeu que é preciso muita. Mas que é a vida. Mas uma outra vida sem ele. Afinal foram mais de 50 anos juntos. “Mas pronto, já levo o vinho para sábado. Está arrumado. A sua senhora está bem?”

“Saúde, muita saúde”, disse a despedir-se.

Vejo-a passar todos os dias diante da loja. Como sempre. E ouço a gargalhada do marido a dar-me os bons dias e a despedir-se com “saúde”.

Jaime

2022 Feveiro 04

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